Intervenção
A volta da perversa ‘gratificação faroeste’
Luiz Eduardo Soares
UFRJ
Domingos Peixoto/Reprodução

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A sucessão de tragédias mundiais, sintetizada pelo nome Gaza, roubou de nós a força de palavras que nos permitissem manifestar repúdio, indignação e revolta, e que talvez nos ajudassem a elaborar o luto e a lidar com efeitos traumáticos. O esvaziamento da linguagem diante da dimensão indescritível e incalculável das atrocidades genocidas perpetradas contra o povo palestino coincide com a revogação das leis internacionais e com a substituição de política e diplomacia por força e arrogância imperial. A magnitude da carnificina embota as vozes da resistência e refrata as mazelas que testemunhamos em nosso país.
Entretanto, é preciso insistir no truísmo: sofrimento evitável é sofrimento evitável, e é nosso dever lutar para evitá-lo, independentemente de escalas que o relativizem e da sombra dantesca projetada pelas catástrofes. Cada execução extrajudicial de um jovem negro e pobre em nossa vizinhança é a catástrofe estendida até nós, a nos convocar para o coração das trevas. As explosões distantes ecoam nos becos das favelas; o pranto das mães é um só; o mesmo fio de sangue nos une ao mundo atormentado pelos esgares do capital em agonia. Por isso, pesquisadores socialmente comprometidos e militantes por direitos humanos mantemos dupla conexão, dupla atenção: um olho no cenário geopolítico, outro nos territórios brasileiros vulnerabilizados.
A agenda é vasta e de urgência – quando se trata de crimes de Estado, o Brasil não é inocente. Neste momento, o Rio de Janeiro ganha as manchetes: a chamada “gratificação faroeste” está de volta. Repetindo decisão adotada em 1995 – e cancelada em 1998 –, a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) acaba de aprovar a premiação de policiais que se destacam na “neutralização de criminosos”. Todos sabemos o que isso significa: quem matar suspeitos pode ser premiado “em pecúnia” ou “promovido”. Quarenta e cinco deputados estaduais votaram pela aprovação da medida; apenas 17 se opuseram.
Eis o artigo 21 do projeto de lei (PL) nº 6.027/2025:
Fica garantido ao Policial Civil premiação em pecúnia, por mérito especial, a ser concedida em caráter individual, por ato do Chefe do Poder Executivo, após o devido reconhecimento e declaração oficial, realizados através dos procedimentos regulamentares, ordenados pelo Secretário de Estado de Polícia Civil, em percentual mínimo de 10% e máximo de 150% dos vencimentos do servidor premiado, respeitando-se o teto constitucional, nos termos do artigo 37, inciso XI da Constituição Federal, em caso do policial ser vitimado em serviço, efetuar a apreensão de armas de grande calibre ou de uso restrito, em operações policiais, bem como em caso de neutralização de criminosos.
Observe-se ainda que “neutralização de criminosos” pode justificar promoções:
Art. 27. As promoções regulares, por ato de bravura e post mortem serão realizadas com base nos critérios e procedimentos previstos na Lei Complementar Estadual n.º 204/2022, a serem regulamentados por ato normativo. Parágrafo único. As vagas ocupadas através de promoções por ato de bravura ou post mortem não irão ser descontadas das vagas regulares previstas para as promoções pelos critérios de antiguidade ou merecimento.
É preciso dizê-lo com clareza: nenhum parlamentar, nenhuma autoridade da segurança pública ou do governo nutre a ilusão de que a gratificação da brutalidade policial letal contribuirá para a redução da criminalidade. A prática das execuções extrajudiciais, salvo em períodos limitados, tem sido rotineira ao longo das décadas, e o resultado tem sido o fracasso reiterado da segurança pública, amplamente reconhecido. A medida tem óbvios propósitos políticos – não por acaso, está sendo aprovada às vésperas do ano eleitoral. A ideia é acuar o campo político à esquerda, sintonizado com a defesa dos direitos humanos, obrigando seus representantes a assumirem posição crítica à premiação, indispondo-se assim com as corporações policiais – que se creem beneficiárias da medida – e com a opinião pública majoritária, por mais incrível que pareça a quem não conhece a realidade fluminense.
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Até este momento, a principal referência para a disputa política era a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 635, que uniu movimentos sociais e partidos progressistas em defesa de que o Supremo Tribunal Federal (STF) impusesse limites – sustentados em determinações constitucionais e no bom senso – a operações policiais em comunidades, visando à redução das mortes provocadas por intervenção policial e dos efeitos das incursões sobre o funcionamento dos serviços públicos, sobretudo nas áreas de educação e saúde. Governo estadual, Ministério Público, polícias e a Prefeitura do Rio cerraram fileiras contra as limitações, todos concorrendo pelo protagonismo na chamada “luta contra o crime” e, portanto, em seus termos, pela liberação das amarras que supostamente bloqueariam o exercício das atividades policiais. A coalizão reacionária logrou impedir que a ADPF 635 fosse aprovada em sua plenitude, o que implicaria a aplicação de uma série importante de procedimentos demandados por organizações comunitárias. O discurso governamental chegara ao ponto de atribuir à ADPF, temporariamente (e parcialmente) em vigência, o aumento da criminalidade no estado.
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Superado esse embate, seria conveniente para as forças regressivas e obscurantistas erigir outra referência icônica que ordenasse a disputa política segundo uma lógica de inspiração, digamos, totêmica, separando os que somos favoráveis aos direitos humanos, acusados de “defensores de bandidos”, e os que se dispõem a empreender a guerra sem fim contra o crime. Inútil insistir na ausência de evidências a suportar a retórica oficial. O terreno pantanoso do confronto ideológico e da disputa por hegemonia no imaginário social em nada se parece com a edulcorada ágora habermasiana.
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As vantagens para segmentos policiais corruptos da perversa e hedionda premiação por “neutralização de criminosos” são várias. Vale destacar quatro:
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1) Esses grupos tenderão a prestar lealdade aos líderes institucionais, não por devoção à disciplina e à hierarquia, mas para que se coesione o estrato beneficiário dos mecanismos clientelistas (consolidando-se os próprios mecanismos), ativados pelo poder de conceder gratificações e de garantir promoções na carreira. A dinâmica, de natureza eminentemente endógena, reforça laços de dependência e reciprocidade, blindando o segmento envolvido contra quaisquer modalidades de controle externo.
2) Eventuais tentativas de promover controle interno ou externo das atividades policiais, seja por meio da Corregedoria ou do Ministério Público (entre cujos deveres constitucionais se inclui o exercício desse controle externo), encontrarão muito mais obstáculos do que já ocorre. As razões incluem os elementos assinalados na apresentação do item anterior: laços clientelísticos ensejando lealdades político-corporativas, mas também corresponsabilização da autoridade nos atos objeto de investigação e controle.
3) A estrutura de poder paralelo gerada pelos mecanismos de clientela se consolidará, uma vez que os cargos venham a ser provisionados segundo a lógica descrita; e mudanças que porventura fossem suscitadas por inovações na gestão ou por adoção de novas perspectivas organizacionais serão congeladas. A resistência será tão mais intensa quanto mais ligadas estiverem as cumplicidades de tipo venal (isto é, relativas a ganhos materiais) e ético-moral (atinentes ao juízo quanto a dolo na “neutralização de criminoso”) – e necessariamente estarão ligadas, cada vez mais.
4) Uma vez que corrupção e violência policial tendem a ser dois lados da mesma moeda – como tenho tentado demonstrar ao longo de minha vida, em livros, artigos e entrevistas –, a “neutralização de criminoso” não é, em geral, nem caso isolado, nem o fim de linha de procedimentos anteriores. Matar um suspeito abre espaço para sucessões internas no grupo afetado pela morte, para a afirmação de interesses de grupos rivais e para negociações com aliados da vítima e demais sobreviventes, caso o suspeito mantivesse relações com parceiros envolvidos em negócios ilícitos. O ato não se encerra com a morte; pelo contrário, a morte expande o circuito de práticas ilegais que enovelam os policiais em constelações criminosas. Quando o superior premia ou promove o “neutralizador”, estende ainda mais o circuito, que, se não o fazia, passa a envolvê-lo, direta ou indiretamente. Eis aí mais uma fonte de aprofundamento da desagregação institucional que contamina a política e de expansão do poder miliciano.
Não estou afirmando que esses quatro itens prefiguram situação futura. Pelo contrário, defino-os como precedentes que nos ajudam a compreender as motivações subjacentes ao voto em favor do revival da vergonhosa gratificação faroeste. Em resumo, não se trata de falta de compaixão ou de sensibilidade humanista; a questão é que sobram interesses inconfessáveis.
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LUIZ EDUARDO SOARES (luizeduardosoares09@gmail.com) é professor da Cátedra Patrícia Acioli no Colégio Brasileiro de Altos Estudos (CBAE) da UFRJ e professor voluntário do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da mesma casa. É doutor em ciência política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) do Museu Nacional, da UFRJ. Foi titular da Secretaria Nacional de Segurança Pública, subsecretário estadual de Segurança e coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania do estado do Rio de Janeiro
Publicado em: 26/09/2025
DILEMAS: REFLEXÕES é uma seção especial (blog) de DILEMAS: REVISTA DE ESTUDOS DE CONFLITO E CONTROLE SOCIAL (ISSN Eletrônico: 2178-2792; ISSN Impresso: 1983-5922) e é publicada pelo Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (Necvu) da UFRJ, integrante do INCT/CNPq INViPS. DILEMAS: REFLEXÕES não se responsabiliza por informações, opiniões e outros elementos dos textos aqui publicados. Estes são de inteira responsabilidade de seus autores